Sobre sonhos e necessidades


A lendária frase "eu vou dar tudo o que não tive para o meu filho" nunca foi tão colocada em prática quanto nos últimos tempos, já que as condições econômicas de hoje em dia nos permitem aquisições das mais variadas e até impensadas em outras épocas, nos tempos de nossa infância.  Surge, então, a "geração tem-tudo", pois nunca foi tão fácil ter um jogo eletrônico de última geração ou mesmo fazer uma viagem à tão sonhada Disney, afinal, o cartão de crédito, apesar de ter os juros-mais-altos-do-planeta, permite um parcelamento infindável nas compras.

Eu tive uma "infância anos 70".  Quem é da época se lembra das dificuldades econômicas em que vivíamos, mas eu, eu não era pobre, eu era muito pobre.  Além de não ter uma casa própria para morar, eu e tantas outras crianças não tínhamos acesso ao consumo de brinquedos ou guloseimas que se tem hoje em dia.  Ter iogurte ou batatas fritas em casa era um luxo reservado a poucos e ganhar brinquedos geralmente se restringia a, no máximo, duas ocasiões: no aniversário ou no Natal.  As meninas quase sempre queriam ganhar uma boneca grande, com olhos claros e cabelos loiros, com sapatinhos brancos e vestidos delicados.  Se ela falasse, seria a glória.  Os meninos, uma bicicleta ou um carrinho, ou um caminhão. E na ausência desses brinquedos, uma roupa ou sapatos novos eram também uma conquista a ser celebrada.

Apesar de ter sido muito pobre, minha mãe me presenteou com uma bicicleta.  Sim, eu tive a minha Caloi. Foi uma surpresa sem tamanho, não somente pelo fato de ter uma bicicleta num universo de crianças que não tinham brinquedos decentes, mas pelo fato de nunca ter feito esse pedido.  Claro que se fosse perguntar para uma criança daquela época se ela gostaria de ganhar uma bicicleta, independente de ser menino ou menina, ela diria que sim.  E numa época em que não existia a facilidade de um cartão de crédito que divide as compras em suaves prestações, nem imagino o quanto minha mãe tenha se rasgado para pagar o "carnê" do Ponto Frio Bonzão.

Eu não sonhava com uma bicicleta, eu queria ter uma casa para morar e, sim, eu queria ser escolhida no programa Boa Noite, Cinderela, do Silvio Santos, que eu havia visto na TV da casa de algum vizinho.  Sim, eu também queria sentar naquele trono, com manto e coroa e todos aqueles brinquedos aos meus pés.  Mas não era nenhum sonho, apenas o desejo infantil de uma das várias crianças desprovidas de brinquedos daquela geração.

Os filhos chegam e as lembranças da infância frustrada pelo que não se tinha se transformam numa necessidade emergente e vital em dar aos filhos tudo-o-que-não-tivemos.  E aí criamos a tal necessidade desnecessária, despertando nas nossas crianças interesses que não existem nelas, mas em nós.   Acontece que aquilo que foi necessário naquela infância não é necessariamente necessário na infância nos nossos filhos.  Redundante?  Não, senão, não entupiríamos nossas crianças com coisas que satisfazem a nossa frustração infantil.

Davi ganhou sua primeira bicicleta com um pouco mais de 2 anos de vida.  Nessa idade, não consigo vislumbrar uma criança sonhando com tal brinquedo, e até mesmo por conta da sua geração, o máximo que queira seja um tablet cheio de joguinhos eletrônicos, e isso ele ainda não tem.  Claro que ele gostou muito do brinquedo e já pede outra maior, de preferência sem as rodinhas menores.  Aprendeu bem rápido a andar de bicicleta e com uma dose de irresponsabilidade minha não usa capacete ou outros apetrechos de proteção, ou seja, cai, se machuca e levanta, da mesma forma que eu aprendi, no meu caso, sem as tais rodinhas.

Quando decidi comprar a tal bicicleta, minha intenção era realmente que ele soubesse andar de bicicleta, um aprendizado que, além de prazeroso, é prático e que se leva por toda a vida.  Eu tinha esse pensamento porque a bicicleta nunca havia sido um sonho meu, então, de maneira natural e sem criar necessidade ou expectativas nele, dei-lhe uma bicicleta.  Ele, por sua vez, vê o brinquedo como mais um objeto a ser utilizado de forma prática e prazerosa e nunca teve a necessidade de tê-lo.   

Mas será que, apesar de ter tido uma infância tão desprovida eu sou uma mãe tão "cabeça feita" assim? Não, porque o que acontece hoje em dia é a comparação entre meu filho e as outras crianças que têm um amontoado generoso de brinquedos dos mais variados, na maioria eletrônicos.  Como já citei, Davi ainda não tem um tablet, na verdade, ele não tem nenhum brinquedo eletrônico pelo simples fato de que seus pais não têm a menor necessidade de criar nele essa necessidade, ou talvez por serem péssimos em jogos eletrônicos. Porém, muitos de seus coleguinhas e crianças da idade já são exímios pitolos de joysticks. E aí vem a tal comparação e com ela a necessidade de satisfazer uma expectativa que talvez nem ele tenha, ou que só tenha enquanto está com seus coleguinhas, porque até hoje ele não manifestou nenhum desejo de ganhar tais brinquedos.  

Já falei algumas vezes por aqui que tenho, sim, vontade de dar muitos brinquedos para o Davi, mas tenho que escolher entre algumas prioridades.  Fico frustrada muitas vezes por não ter dinheiro sobrando para presenteá-lo com vários eletrônicos, afinal, não posso ignorar os tempos atuais e também não vou me comportar como se não houvesse valor nessas coisas. Tenho que respeitar seu momento, sua geração, sua época e sua infância. Me esforço, contudo, em não criar expectativas em coisas que para ele não são tão necessárias ou que sirvam para aplacar as minhas frustações e/ou comparações com outras crianças

Mas eu tenho, sim, um sonho de infância que gostaria de realizar no Davi: é o da lancheira de escola.  Não, eu não tive uma lancheira para levar para a escola e até hoje sou frustrada por isso. Eu queria ter uma lancheira para eu poder me sentar e a abrí-la na hora do recreio e tirar dela um sanduíche e a garrafinha com suco.  Mas eu não tive e a minha infância passou e hoje o Davi faz todas as refeições na escola e talvez quando estiver maior ele não venha a ter necessidade de levar uma lancheira pois poderá lanchar na cantina.  Então, acho pouco provável que eu vá satifazer a minha frustração preparando sanduíches e sucos para o Davi levar para a escola.

Em breve Davi terá uma bicicleta maior e também seus eletrônicos e, quem sabe, se torne um exímio piloto de joysticks.  Quem sabe um dia possamos também visitar a Disney, pois o cartão de crédito nos possibilita pagar essas coisas em suave prestações.

Mas eu ainda sinto a falta da minha lancheira.


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